quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Democracia Sem Povo

Eliane Brum  | 21 AGO 2017

Texto original:


Texto editado / NMM:

Discute-se muito 2018. Mas discutimos menos do que deveríamos o que vivemos em 2017, neste exato momento.

O Brasil inventou a democracia sem povo. O povo, para aqueles que hoje detêm o poder no Brasil, não tem a menor importância. O povo é um nada.

Michel Temer (PMDB) pode fazer – faz e fará – todas as maldades e concessões que precisar para continuar onde está. Sente-se livre para não precisar dar qualquer satisfação à população. Todo o seu cálculo é evitar ser em algum momento despachado para a cadeia. Havia uma conversa de conteúdo mais do que suspeito, fora da agenda, à noite, na residência do presidente, e uma mala de dinheiro nas mãos de um homem de confiança de Temer – e não foi suficiente. Era mais do que suficiente. Mas a justiça não está em questão.

A presidência do Brasil hoje está nas mãos de um homem que não tem nada a perder desagradando seus eleitores, porque sequer tem eleitores. Sua salvação está nas mãos daqueles que agrada distribuindo os recursos públicos que faltam para o que é essencial e tomando decisões que afetarão a vida dos brasileiros por décadas.

Temer depende do Congresso, e não da população. Assim como depende de as forças econômicas promotoras do impeachment continuarem achando que ele ainda pode fazer o serviço sujo de implantar rapidamente um projeto não eleito. Então, o povo que se lixe.

O Congresso não teme mais perder eleitores. Nem mesmo considera importante simular qualquer probidade. Essa poderia ser uma preocupação, nem que seja pensando nas próximas eleições. Mas a oportunidade de saquear a nação a favor dos grupos que os sustentam e de sua própria locupletação foi tão atrativa, que o povo que se lixe. A hora é agora.

Os deputados cuidam também de aprovar “reforma política”, mas uma que torne mais difícil renovar a Câmara com quem não pertença à turma. É o caso do tal “Distritão”, considerado pela maioria dos analistas a pior alternativa possível.

A Bancada Ruralista é o exemplo mais bem acabado deste momento do Congresso. Grande fiadora da permanência de Temer na presidência, com 200 deputados e 24 senadores, é o que há de mais arcaico no setor agropecuário. Essa espécie não se pauta por melhorar a produção pelo avanço tecnológico e pela recuperação das terras e pastos degradados, mas pelo que lhe parece mais fácil: avançando sobre as terras públicas, incluindo terras indígenas e unidades de preservação ambiental. O coronelismo parece já ter se infiltrado no DNA, seja herdado ou imitado. Para avançar sobre as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as mais preservadas do país, os ruralistas têm cometido todo o tipo de atrocidades desde a posse de Temer.

Para a manutenção de Temer no poder já foram entregues ou podem ser em muito breve barbaridades de todo o tipo: o desmonte da Funai, hoje à míngua e nas mãos de um general; a regularização de terras griladas (roubadas do patrimônio público), aumentando o desmatamento e os conflitos; o parcelamento de dívidas de proprietários rurais com a previdência em até 176 vezes, com redução da contribuição; a redução da proteção de unidades de conservação; mudanças nas regras do licenciamento ambiental que tornarão o licenciamento ambiental quase inexistente.

Os ruralistas querem bem mais: querem até o fim deste ano conseguir a permissão da venda de terras para estrangeiros e também mudar as regras sobre os agrotóxicos, o que no Brasil já é uma farra com graves consequências para a saúde de toda a população. E o objetivo de sempre, sua bandeira mais querida: botar a mão nas terras públicas de usufruto dos índios com a abominação chamada PEC 215.

eleição de 2018 está muito longe. Enquanto ela não chega, os ruralistas estão transformando o país numa ação entre amigos. Estão mudando o mapa do Brasil. Quando 2018 chegar, já era. Porque já é.

Há muita vida até 2018. A fome e a miséria aumentando, as chacinas no campo e na floresta aumentando, os moradores de rua multiplicando-se, e os direitos duramente conquistados sendo destruídos um a um. E a Polícia Militar a defender os grupos no poder.

Parece que se vive como se “ok, vamos tentar melhorar o xadrez para 2018”. Mas o que se viverá até a eleição e a posse dos eleitos afetará de forma profunda e permanente a vida dos brasileiros.

O ano de 2017, para quem tem o poder para saquear o Brasil e os direitos dos brasileiros, está sendo o melhor. Poder usurpar de tal forma o poder e ainda chamar de democracia?

Não é preciso mais sequer manter as aparências. Para o impeachment, havia multidões nas ruas. Pode-se suspeitar das reais intenções dos grupos que lideravam os protestos “anticorrupção” – hoje desmoralizados pelo silêncio diante das evidências muito mais eloquentes contra Michel Temer –, mas não se pode negar que havia milhões nas ruas. Havia aparência. Hoje, a população sequer está nas ruas. E torna-se muito mais assustador quando aqueles que detêm o poder chegam à conclusão de que não precisam mais sequer convencer a população ou cortejar seus eleitores. A tarefa que precisavam que a população desempenhasse era a de ir para as ruas pedir o impeachment de Dilma Rousseff. Milhões foram, vestidos de amarelo, sob a sombra do pato da Fiesp. E agora se tornaram dispensáveis. E a parcela da esquerda que ainda podia fazer um barulho pelo impeachment de Temer parece ter também calculado que é melhor (para seu projeto eleitoral) deixar as coisas se esgarçarem ainda mais até 2018.

Ter o país sob o comando de pessoas que distorcem e afirmam o contrário do que apontam os fatos é assustador. Mas alcançamos um outro tipo de perversão: pessoas sequer se preocupam em aparentarem fazer a coisa certa. Os encontros à noite, fora da agenda, de Michel Temer; as confabulações de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, com pessoas que poderá julgar; Aécio Neves autoconvertido no novo Eduardo Cunha. Enfim, nada mais eloquente do que uma mala de dinheiro ligada a um presidente que não é impedido de presidir.

Se Temer ainda no Planalto é a materialização do cinismo vigente no país, o candidato a substituí-lo em caso de afastamento, Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara e também investigado da Lava Jato, é a troca para nada mudar, já devidamente acertada com os reais donos do poder.

A crise da palavra, esta que está no coração deste momento histórico, segue produzindo fantasmagorias. Como a “pacificação do país” de Michel Temer; ou o argumento de que é melhor não tirar Temer agora por conta da “estabilidade”. Estabilidade para quem? Hoje, a obscenidade que enche a boca de tantos é “estabilidade”.

Há também os tais “sinais da economia”. Se há algo que atravessa a história do país, é a mística dos economistas com seus jargões.­­­­­­É bem curioso o poder que exerce certa casta de economistas, ao ocupar largos espaços na mídia para legitimar o ilegitimável. Delfim Netto é talvez o personagem mais fascinante. Signatário do AI-5 e ministro de vários governos da ditadura, tornou-se um guru, ditando o que está certo e errado no país. Dando receitas para o momento como se estivesse num programa de culinária.

Os gritos nas redes sociais servem mais para ilusão de que se protesta e de que se age. Uma espécie de descarga de energia que se exaure na própria bolha e nada causa. Temer causa vexame em cima de vexame no exterior e já não importa. Já não há vergonha. E há uma desistência. E talvez algo ainda pior, que é a corrosão de qualquer sentimento de pertencer a uma comunidade. O imperativo parece ser o de cuidar da própria vida enquanto der.

2018 está longe, e não há nenhuma garantia de que vai melhorar depois da eleição. Mas agora, neste momento, pessoas estão morrendo mais do que antes, passando fome mais do que antes, sendo expulsas de suas casas mais do que antes, perdendo seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais, seguidamente com a farda do Estado. A floresta amazônica está sendo mais uma vez entregue ao que há de mais arcaico na história do Brasil e está sendo destruída de forma acelerada, comprometendo qualquer futuro possível.


E você, isso que se convencionou chamar de “povo”, não importa para mais nada.

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